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CAPOEIRA E SEUS CANTADORES

CAPOEIRA E SEUS CANTADORES

Por: Jean Pangolin

Mestre Jean Pangolin
A musicalidade traz em si um elemento fundamental para o desenvolvimento da capoeira, pois ela será responsável pelo encadeamento ritualístico, pela oralidade na construção do conhecimento, pelo “balanço” do jogo e pela construção simbólica da “atmosfera” da “vadiação”.

A musicalidade nunca será uma simples conseqüência fisiológica da articulação bem sucedida entre cordas vocais, músculos da face e diafragma, pois em capoeira a complementaridade entre os diferentes, articulados em propósito comum para o coletivo, supera qualquer perspectiva ou habilidade individual, transformando o bom cantador naquele que mais motiva o coletivo a cantar junto, muitas vezes ofuscando a própria voz de quem puxa o canto, ou seja, cantador de “verdade” na capoeira não é o que mais aparece, mas o que projeta o conjunto da roda em ritual.

O bom cantador nem sempre é aquele com a voz mais bonita e empostada, nem sempre é o que tem a melhor pronuncia e português correto, nem sempre é o que grita mais alto.....O bom cantador é o que cantando encanta, aquele que consegue captar a magia do momento do jogo, fazendo com que sua cantiga seja o “catalisador” de uma química que eleva os capoeiras a um “transe” coletivo, que de tão especial nos faz sonhar acordado.

Não existe bom jogo sem boa musicalidade, pois a organicidade da roda é um complexo sistema multifacetado, lembrando o corpo humano, em que cada órgão cumpre uma função distinta a favor do funcionamento de todo o sistema para que a vida aconteça. Assim, tão importante quanto o “movimento”, aquilo que o impulsiona, harmoniza e qualifica, também deve ser considerado e exercitado, a cantiga.

È impressionante como Mestre Boca Rica, cantando quase sussurrando, com um único berimbau, se espalhou pelo planeta como um vírus positivo da boa capoeiragem......Impressionante como décadas mais tarde, as gravações de Bimba, Pastinha, Waldemar, Canjiquinha, Camafeu de Oxossi e outros, ainda encantam, mesmo sem todos os recursos tecnológicos atuais.

O maior desafio de um grande cantador em capoeira será sempre conseguir captar o “cheiro do dendê“ em uma roda, sendo simples, singelo e traduzindo na poesia de seu canto os mistérios da arte capoeira. Neste sentido, se você deseja qualificar seu canto, te recomendo que antes de cantar tente ouvir mais, e não ouça qualquer coisa, ouça os sons mais elementares produzidos pela mãe natureza, o ronco do mar, a suavidade das ondas, o fluir da cachoeira, o vento nas arvores, trovões e ate mesmo o pingo da chuva caindo no chão, percebendo que cada som deste esta articulado a um contexto especifico e complexo, sendo seu maior sentido a conexão com o todo.

Por fim, aprenda que a cantiga é também uma forma de doação à arte capoeira, portanto, ser um bom cantador será, acima de tudo, a capacidade de brindar os outros com aquilo que temos de melhor, pois o lamento da ladainha emociona e arrepia o outro, também na medida em que o cantador já chorou e se arrepiou antes, incorporando o sentimento expresso em seu cantar. Desta forma, entenda que viver o momento é mais importante do que o resultado final, portanto, não fique preocupado com o impacto de sua voz na roda, mas tente viver junto com seus pares magia do contexto no milésimo de segundo em que sua cantiga toca a fibra mais tênue do coração de quem te escuta, transformando o momento em único e especial para todos.

Vamos cantar mais com a alma!!!!!!!

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