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CAPOEIRA, FESTAS, BATIZADOS E ENCONTROS

Por: Mestre Jean Pangolin

        O dia amanhecia de forma encantadora, podia ouvir os pássaros no jardim, o galo já dava sinal de vida e o barulho da cidade grande já invadia o pedacinho de silêncio que envolvia aquela madrugada. Meus pensamentos voavam, pois aquele com certeza seria um dia especialíssimo, considerando toda preparação de um ano inteiro, era o dia de meu batismo em Capoeira. Um misto de ansiedade e dúvida precipitava-se em minha mais delgada fibra cardíaca. Lembrava-me de todas as falas do Mestre, dos exercícios, dos ensaios para o show que seria apresentado para os convidados e principalmente de todas as recomendações e responsabilidades de uma pessoa que receberia a primeira graduação.
        Na chegada ao ginásio onde aconteceria o evento senti um arrepio estranho e uma forte sensação de dúvida sobre aquele passo importante que daria naquele dia, me tornar um capoeira, batizado na Bahia, mesmo assim segui em frente, passando pela entrada principal da festa, quando fui abordado por meu companheiro de grupo que recepcionava os convidados, ele me olhou de for forma tranqüila e receptiva e em um gesto de afeto, me deu um abraço e indicou o caminho do vestiário...  Ufa...  Uma etapa vencida... Já estava dentro...  Troquei de roupa e fui cumprimentar o meu Mestre, saudando o dono da casa, pois aprendi que desta forma estaria fazendo valer um fundamento ancestral da capoeira e ainda sendo cordial...  Logo depois me posicionei na roda e aguardei o momento do jogo.
        Na hora de meu jogo oficial para o batismo pude observar por uma fração de segundos o semblante de meu padrinho, um negro alto, forte, vestido de amarelo e preto, com um sorriso largo no rosto e uma forma peculiar de jogar, só pude entender anos mais tarde, pois o nervosismo daquele momento e minha inexperiência em capoeira não me permitiam compreender naquele momento...  Ele olhou para mim antes do jogo e disse: Como se chama capoeira?  Eu respondi ainda com a voz tremula...  Eu me chamo Jean, mas meu Mestre me disse que somente a partir do batizado eu teria meu nome de capoeira, o apelido. Assim seguimos dialogando, agora só com movimentos e foi mágico aquele momento... Inesquecível...
        Hoje, quase três décadas depois da cerimônia de meu batismo em capoeira, fui a mais um dos batizados desta tal capoeira moderna...  Aquela que se diz mais rápida e evoluída...  A capoeira do futuro...  Acreditem, fiquei perplexo com os absurdos...  Logo na minha chegada, havia uma figura masculina truculenta e uma mocinha na recepção, ambos de cara fechada e com um ar de superioridade...... Para mim parecia estranho, pois aprendi que quando somos convidados para uma festa, somos importantes para o dono da festa e este por sua vez, nos trata de forma cordial e elegante, pois sabe que estamos lá para prestigiá-lo...  Seguindo as coisas estranhas...  O rapaz truculento da portaria me perguntou: Qual seu nome? Eu respondi: Jean, mas na capoeira sou conhecido como Pangolin...  Ele me olhou todo e provavelmente por não ter percebido em mim as características dos “super atletas” da Capoeira Contemporânea..., deve ter pensado: Mais um capoeira Saroba... (rsrsrsrsrsrs). Isso tudo, por não caber em seu programa estereotipado de capoeiras, um Mestre sorridente, usando óculos, com poucos músculos aparentes e trajando uma indumentária de referência afrodescendente.
        Segui em direção da roda e pude perceber uma musicalidade acelerada e com pouquíssima cadência e quando olhei para o jogo, percebi que os capoeiras não jogavam no ritmo da música..  Por incrível que pareça, eles jogavam mais rápido do que a música, a qual já estava acelerada. Pude observar o Mestre organizador do evento, estava parado na frente da bateria, com uma expressão fechada, de braços cruzados e gritando muito forte com o grupo de crianças que estava sendo batizado... Era possível perceber a expressão de temor no rosto de cada criança naquele lugar. As pessoas entravam para batizar as crianças e faziam de tudo, menos perceber as crianças, estranho, pois ali, os pequenos capoeiras deveriam ser o grande propósito da festa. Fiquei pensando como seria difícil explicar depois para cada criança que aquela pessoa estranha e truculenta, que havia jogado com ela no batizado, deveria ser chamada de padrinho.
        Fui cuidadosamente me aproximando da bateria para tocar um pouco, na tentativa de contribuir com a harmonia musical do evento e para minha surpresa fui informado, pessoas de fora do grupo não estão autorizadas a pegar/tocar instrumentos, nem cantar...  Hum... Senti-me como um convidado de uma festa de aniversário que foi impedido de cantar os parabéns para o aniversariante, mas mesmo assim segui tentando fazer parte da roda, pois ainda pretendia colaborar respondendo o coro, mas ali fui informado, pessoas de fora não podiam ficar, pois somente à linha de frente estava autorizada a responder o coro e ficar na roda...  Pensei... LINHA DE FRENTE?!   Poxa?...  Eles pensam estar numa batalha, onde os capoeiras são soldados com a função de extermínio, similar as linhas de frente no “front de guerra”...  Hum... Realmente eu não poderia fazer parte daquilo...   Fui me afastando da roda e, pouco a pouco, me distanciando do local...  Quando estava perto da porta de saída, o Mestre do evento veio em minha direção e disse...  Mestre Pangolin, por favor, volte, não tenha medo...  Meus meninos estão “PILHADOS” por conta do batizado, mas o senhor será sempre bem vindo em nossa festa e lhe prometo, ninguém tocará no senhor. Olhei para o Mestre e lhe disse: Meu camarada venho de um lugar onde só vai quem tem negócio, pois nem todos sabem o caminho das pedras...  Estou aqui para confraternizar, mas percebi que a intenção está sendo outra e por isso estou indo embora, mas te recomendo Mestre “Xícara sem alça” (apelido do mestre organizador), faça uma visita ao Terreiro de Jesus, península Itapajipana, Forte da Capoeira ou nas academias dos mais antigos e tente observar como estas pessoas e lugares constroem o cotidiano da capoeira, assim, talvez um dia você possa entender o sentido do “SER MESTRE” e da função da capoeira para humanidade... E por fim, nunca mais esqueça...
QUEM É DE GRUPO NÃO CAI EM GRUPO! 
A CAPOEIRA É SOMADA, MULTIPLICADA, SUBTRAIDA E DIVIDIDA!
        O episódio relatado acima, lamentavelmente é uma história verídica, sendo apenas preservada a identidade do Mestre “Xícara sem alça”, podendo se confundir com outros inúmeros Mestres sem orientação e que seguem deturpando o significado simbólico dos encontros festivos de matriz africana.
        A festa de batizado, criada por volta da década de trinta pelo Mestre Bimba e seus discípulos, possuía uma conotação simbólica de cerimônia iniciática e ainda uma oportunidade de confraternização para comunidade de capoeira. Neste sentido, as modificações ocorridas na atualidade confundem os princípios da criação Regional e ainda ferem normas básicas de bom senso e civilidade, considerando a perspectiva adotada hoje por parte de alguns grupos, transformando o batizado em uma oportunidade exclusiva de propaganda da instituição organizadora, hostilizando os convidados, perdendo o sentido de comunhão, negando a diversidade e principalmente, seguindo uma lógica de mercado que nega a identidade ancestral da capoeira.
        Por tudo isso acredito na necessidade de uma pausa para refletirmos sobre este tema, pois caso contrário, poderemos ver o dia no qual os eventos de capoeira serão confundidos com alguma etapa do UFC, ou coisa parecida, e isso pelo simples fato de ser um “bom negócio”, prevalecendo a lógica de maior lucro para os organizadores, mesmo que isso custe a morte simbólica de um projeto de mundo mais fraterno, humano e solidário.

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